terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O terceiro encontro do I ciclo de debates "Educação e Infâncias no CPII: Integração e Transição entre Educação Infantil e Ensino Fundamental" trouxe uma discussão muito rica e instigante, tratando do tema "Brincadeira tem hora?" E nossos convidados contribuíram bastante com suas reflexões e experiências. Ana Carolina Martins, que representou o segmento Educação Infantil no debate em questão, compartilhou conosco o texto de sua autoria que usou como base de sua fala no debate. Aí vai mais um gostinho do debate para quem não foi e uma lembrança boa para quem esteve lá no dia.


Brincadeira tem hora?1


Ana Carolina Martins2

Antes de responder a pergunta que motiva este encontro, “Brincadeira tem hora?” (que
talvez eu sequer responda por acreditar que há coisas mais férteis para fazer com as perguntas do que simplesmente respondê-las), gostaria de convidá-los a pensar sobre a própria dimensão do brincar. O que está inscrito nesse gesto que une humanos e gatos? Que aproxima sociedades diametralmente opostas como nativos da Polinésia no século XIX e as crianças que estudam conosco, aqui no Pedro II? Que operação a brincadeira realiza no mundo? Que saber é este que a infância guarda? E por que nos ocupamos com empenho em desensinar a brincar? Irei ensaiar nesta comunicação uma experiência de fazer outras coisas com as perguntas. Procurarei, ao invés de respondê-las, fazer imagens com as perguntas. Não imagens captadas pela vista, não imagens-projeções, mas figuras imaginadas que possam nos aproximar das perguntas ao modo das crianças.

Brincar é o modo próprio de existência da infância. Poderíamos dizer, ampliando o
conceito de infância, que todo aquele que não desaprendeu a brincar mantêm em si a potência da infância. E com esta o seu saber mais fundamental que é aquele a partir do qual as crianças agem no mundo. Brincar é agir no mundo ao modo das crianças. Devemos nos debruçar um pouco sobre o que seja agir no mundo, ou com Hannah Arendt, agir-mundo (ARENDT, 2010). Trata-se de uma ação na qual estão inscritas possibilidades inéditas que modificam as relações habituais e as formas tradicionais de existir.

Uma caixa de brinquedos é suficiente para produzir uma figura desta particular forma de ação presente no gesto infantil de brincar. Ao organizarmos os espaços e brinquedos nas nossas salas, não raro preparamos e separamos, cuidadosamente, as caixas de carrinho, os utensílios para massinha, as caixas de boneca, o báu de fantoches, os potes com miniaturas, outros com os animais da fazenda, num movimento infinito de classificação que diz respeito unicamente aos adultos. Mas, ao fazermos a experiência de observar os critérios de organização das crianças, não deveríamos nos surpreender, porque sempre acontece, quando encontrarmos panelinhas nas massinhas, blocos de montar dentro da geladeira da casinha ou nas caçambas dos caminhões, os animais da fazenda sobre os carrinhos de bebês, etc. Infinita e inutilmente vamos nós, outra vez, por cada coisa em seu lugar. Estamos, com isso, apenas a achatar o mundo sobre o qual as crianças estavam a inventar, a reinstituir de outros modos os sentidos já determinados de nossa ordem, sem nos darmos conta de que lá, nos blocos dentro das geladeiras, estavam as sobremesas
mais deliciosas para as quais não temos o paladar apurado.

Ao aproximar os objetos da forma mais aparentemente desbaratada, as crianças investem seus sentidos no mundo, criam novas formas de se relacionar com as coisas, instauram novas séries. Esse agir mundo infantil têm, além de colocar sobre a mesma superfície objetos aparentemente desconexos, como os poetas colocam as palavras nos poemas, um aspecto temporal que desabilita o tempo cronológico. Este tempo, o nosso, adulto e responsável, dos relógios e das horas aulas, são completamente esquecidos pelas crianças quando brincam. Esse tempo a que Walter Benjamin chamou “homogêneo e vazio” (BENJAMIN, 2012) se transforma em uma temporalidade integral e plena de alegria, nas mãos das crianças.

A transformação da cronologia acontece em diversos níveis. Quando a temporalidade se
comprime num brevíssimo instante de recreio, que por mais que pareçam, aos nossos ouvidos, uma eterna gritaria endiabrada é, sempre, ligeiríssimo para as crianças. Acontece também quando elas transformam um objeto qualquer de uso cotidiano, um teclado velho de computador, uma bolsa já há muito esquecida no cabide de fantasias, em brinquedo. Esse objeto, pelo gesto da miniaturização, se torna um contradispositivo que instaura um novo tempo, que não é nem passado, nem futuro, mas a temporalidade da infância, a temporalidade do entre, a mais fértil temporalidade que a experiência humana do tempo é capaz de fazer. O objeto que antes pertencia à esfera do mundo adulto passa a possuir um novo uso, em sua nova configuração de brinquedo, esse objeto guarda a potência revolucionária de um “uma vez, agora não mais”, desse modo: “uma vez, agora não mais uma bolsa”, “uma vez, agora não mais teclado”. Sendo “uma vez agora não mais”, tudo pode se tornar brinquedo e é isso que fazem as crianças, transformam o mundo das coisas úteis em brinquedos, como nos ensina Giorgio Agamben (AGAMBEN, 2005).

Assim, a pergunta que me motivou a pensar este pequeno, porém radical, deslocamento da experiência do tempo, pode ser contornada. Se a interrogação “brincadeira tem hora?” diz respeito ao tempo cronológico, se a pergunta pressupõe um sim ou um não como resposta, irei mantê-la em suspenso. Peço desculpas, mas não sou capaz de dar essa resposta. Hora, essa fração de tempo mensurável e quantificável não cabe na temporalidade da infância e do brinquedo. compreendemos isto quando pensamos que toda a existência infantil é brincadeira. De modo que, da alvorada ao instante em que adormece é a hora da brincadeira para uma criança. 

Outras perguntas, no entanto, surgem desta não resposta: O que cabe à nós, professores, diante de uma tal existência, diante da constatação de que seres brincantes são o que são as crianças? Cabe insistir na inadequação da experiência de novas ordens diante de nossa organização? Insistir na impropriedade de outros modos de se relacionar com o tempo em relação à cronologia? Se é isso que nos cabe, como muitas vezes acreditamos, iremos falhar.  Falharemos porque as crianças brincaram com suas borrachas, escrevendo “SIM”, “NÃO” e“TALVEZ” e jogando com elas a sorte umas das outras, numa espécie de quiromancia profanada. Falharemos porque elas dobram as folhas de papel com as atividades que muitas vezes preparamos a fim de ensiná-las (as letras, as cores, os números, as estações do ano) pintadas por elas e oferecem aos amigos e professores queridos, de novo dando a estes papéis usos completamente novos e inesperados. Eu mesma, com alegria e espanto já recebi inúmeras gravuras que pretendiam ensinar que em setembro celebramos a chegada da primavera, como um presente, como um afeto, como uma brincadeira.

Restam ainda outras perguntas (que continuarão a restar, mas que podem nos deslocar, tal
qual os brinquedos carregados de um lugar a outro): Será que cabe aos professores, então,
somente permitir a brincadeira? Abrir espaço para a brincadeira? Constatar que as crianças
gostam de brincar e, somente por isso, transformar a brincadeira em meio para que as crianças aprendam outras coisas? Aos professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental, é familiar a afirmação de que as crianças aprendem brincando. E atentos a esta informação, passamos a tentar ensinar a matemática a partir de jogos, a ensinar a língua escrita através de brincadeiras com o alfabeto e, com isso, transformamos a brincadeira em um utensílio de uso adulto. Transformamos a brincadeira tão somente em uma estratégia pedagógica.

Ao operarmos com as brincadeiras como um mero facilitador da aprendizagem, estaremos ainda esquecendo que a brincadeira é uma forma-de-vida (AGAMBEN, 2014), a forma-de-vida da infância e não estaremos aprendendo nada com elas. Ao investirmos na brincadeira como um meio para alguma coisa, um caminho, uma via, ao depositarmos nossa prática na compreensão da brincadeira como um mecanismo através do qual as crianças aprendem, nós, professores, estaremos retirando do brincar sua principal força. Força que não diz respeito às nossas finalidades e objetivos, mas que diz respeito somente a potência infantil de agir no mundo. Não por acaso, temos tanta dificuldade de jogar com elas. Nossa dificuldade decorre do fato de que jogamos na nossa língua, jogamos com as regras prontas do mundo significado e limitado dos adultos, do saber e da ciência. O jogo não é isto. Aprender não é isto. Isto é, transmitir sentidos já instaurados, lógicas pré-fabricadas disfarçadas pela dinâmica do jogo.

Só jogaremos com a matemática e com a representação escrita da língua quando entendermos que esse movimento é feito pelas próprias crianças. Porque essas linguagens estão no mundo e se elas estão no mundo as crianças brincam com elas, brincam de descobrir suas funções para os adultos, inventam as suas próprias funções para elas, percebem as lógicas já instauradas e propõe novas lógicas.

E este seja, talvez o ponto mais delicado de tangenciar. Se temos tão pouco tempo cronológico para ensinar tantas coisas, se é preciso alfabetizar, se elas já experimentaram jogar com essas linguagens na Educação Infantil (em alguns contextos específicos e privilegiados), talvez seja hora, no Ensino Fundamental, de fazer com que passem um pouco para essa forma de brincar, a forma da brincadeira como um meio para aprender. Talvez a cronologia determinante de nossas vidas na sociedade contemporânea só permita que a escola seja isso, no melhor dos casos, um espaço onde as crianças poderão aprender brincando. Mas se assim for, onde o novo? Ou, julgamos que vivemos numa sociedade tão bem acabada que não precisamos do novo? Que ao perpetuarmos o já dado realizamos mais que o suficiente, considerando que chegamos a um estado de evolução tal, que nada mais é possível? Não há outra forma de responder a essa pergunta se não com o deboche da hashtag , #sóquenão.

Não é saber operar tecnicamente algumas linguagens ou disciplinas que muda o mundo. Como tentei demonstrar, o que instaura o inédito é o agir mundo das crianças. É a capacidade da infância de deslocar os sentidos já dados, de colocar sobre a tábua do saber pequenos dos adultos, um tamanduá com asas. As crianças inventam, todos os dias, ornitorrincos para a ciência. Ornitorrinco é aquele animal, meio ave, meio aquático, meio mamífero, que bota ovos e que fez a ciência ter que inventar novas categorias porque as suas se mostraram falhas, porque as categorias da ciência são também uma invenção, um recorte, uma escolha. E isso não é mal, mas não é tudo. Tem um limite e o limite está em uma nova invenção. O limite está em uma cadeia de limão para onde as crianças enviam os seus monstros.


Referências Bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da
história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza: regras monásticas e formas-de-vida. Tradução
de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2014.
ARENDT, Hannah. A condição Humana ; tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: O anjo da história. Organização
e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
BENJAMIN. Walter. “Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra
monumental” In: Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre a literatura e história da cultura . São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
BENJAMIN. Walter. “História Cultural do brinquedo” In: Obras Escolhidas I: Magia e
técnica, arte e política: Ensaios sobre a literatura e história da cultura . São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987.

1 Comunicação apresentada no I Educação e Infância do CPII no dia 16 de outubro de 2017.
2 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Filosofia - PPGF da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professora do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Departamento de Educação Infantil do Colégio Pedro II.

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